quarta-feira, 17 de julho de 2013

Um Sorriso pra alegrar o dia



Voltando pra casa arrastando um saco de ração Ariosvaldo não conseguia entender de onde viera a infeliz ideia de ter um cachorro em casa. O bicho não tinha tamanho de segurança, as únicas coisas grandes no pobre eram a fome e aquilo que ele deixava na porta de casa depois de comer. Pra atrapalhar um bandido só se o infeliz tropeçasse no Sorriso.

Sorriso era o nome daquela beleza. Por causa dos dois dentes de baixo que ficavam sempre para fora da boca. No fundo o nome simpático era uma tentativa de fazer o coitado parecer menos feio. Quando ele era filhote era até engraçadinho, tão pequenininho e com aquela carinha de bravo, mas o tempo não foi bom com o Sorriso. Parte do pelo deitou, mas nas costas e em volta do focinho ele ficou arrepiado, além disso, o pelo era duro e variava entre o marrom sujo e o preto desbotado. Lembrava muito uma pantufa velha.

A bem da verdade o Sorriso não foi exatamente escolhido para ser o bichinho de estimação da casa, ele foi ficando. Nisso convenhamos que ele era muito bom, ficar era uma coisa que ele fazia como nenhum outro cachorro. Conseguia ficar horas deitado na porta sem mexer um músculo, parecia até a reencarnação de algum mestre budista, a paciência com que ele ignorava as moscas que sentavam nele era impressionante. Ele apareceu com poucos dias de vida na porta de casa sabe-se lá como. O pátio era todo cercado por uma tela alta, para alguém deixá-lo lá teria que arremessar o filhote por cima dela. Se bem que isso explicaria o mau humor do Sorriso. Ariosvaldo até tentou enxotá-lo, mas ele fez que não entendeu o recado e foi se acomodando no tapete.


Finalmente chega em casa, abre o portão e o Sorriso corre feliz ao seu encontro. Aqueles minutos entre fechar o portão e chegar até a porta devem ser os únicos em que o cachorro fica longe do seu tapete, e isso não é pouca coisa já que ele gosta tanto daquele tapete. Ariosvaldo se sente amado e importante para alguém. Esquece dos problemas do trabalho, da dor nas costas por carregar o saco de ração e se parabeniza pela bendita ideia de ter um cachorro em casa.

Problema não existe



Problema definitivamente é uma coisa que não existe, pelo menos não assim no singular. Quando se fala de um único problema a gente deveria falar dele como “um dos meus problemas”, já que eles vêm sempre acompanhados.

O assoalho da casa de Jurandir mais cedo ou mais tarde ia causar uma tragédia, estava completamente podre. Resolveu tomar uma providência antes que o pior acontecesse. Comprou tábuas, pregos e guardou algum dinheiro para pagar o carpinteiro. Mas se tem uma coisa que os problemas não podem ver é dinheiro de pobre guardado. No mesmo dia em que o material chegou o assoalho, ofendido por se ver trocado por umas tábuas novas, resolveu se abrir. De birra levou pro buraco a geladeira e a mulher do Jurandir.

Táxi de volta do hospital, aluguel de muleta, táxi pra trocar o gesso da perna quebrada, anti-inflamatório, antitérmico, antitetânica, mais um monte de remédios e o conserto da geladeira e lá se foi o dinheiro do carpinteiro. Mas o buraco continuava lá e o inverno estava chegando. Só quem gostou disso foi o cachorro, agora podia dormir dentro de casa. Era só rasgar a lona do buraco e entrar.

Mas, diferente de dinheiro, gente bem intencionada não falta nesse mundo. Os amigos e vizinhos fizeram um mutirão pra recuperar a casa. No domingo bem cedo estava todo mundo lá, o cachorro sentiu que a coisa se complicava pra ele e tentou impedir que os antiburaquistas invadissem seu espaço recém conquistado, mas acabou preso e amarrado nos fundos da casa.

No fim do dia o trabalho estava feito. Poucos móveis foram riscados e quase nenhuma louça quebrada. A camisa usada para estancar o sangue do amigo que cortou o dedo nem faria tanta falta, ela já estava quase paga mesmo. As tábuas de cor diferente que foram dadas pelo vizinho foram usadas no quarto, o degrau que ficou até seria útil pra ele aprender a não arrastar os chinelos, coisa que a mulher reclamava muito. O vizinho foi muito bom ao não cobrar pelas tábuas, afinal não era culpa dele se o filho cortou errado e inutilizou as de Jurandir. O almoço daquele dia e o churrasco de agradecimento saíram bem mais caro do que a mão de obra do carpinteiro, mas o dono do mercado que era um dos voluntários vendeu tudo fiado.


Não existem problemas que não se pode resolver, ou piorar, com gente bem intencionada.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Sabe aqueles dias?


Sabe aqueles dias? Alceu acordou num daqueles dias. O despertador estava mais barulhento, o café estava fraco e o entregador tinha jogado o jornal dentro de uma poça d’água. O ônibus atrasou, por isso chegou tarde e foi repreendido pelo patrão. Um dia daqueles.

Alceu mastigava sua indignação enquanto cortava as peças. O supervisor desavisado não sabia que era um dia daqueles em que não se reclama das peças cortadas tortas. A indignação de Alceu fugiu de sua boca e pulou nos ouvidos do pobre homem. Bradava para todos ouvirem o quanto aquela ferramenta que tinha que usar era ruim e como isso atrapalhava seu trabalho e comprometia sua segurança.

Era daquele tipo que não tinha boca pra nada, quando resolveu falar foi uma surpresa para todos. Seus colegas murmuravam que suas ferramentas também eram ruins e que alguém deveria tomar uma providência. O supervisor sem saber o que fazer, mas achando válida a manifestação de Alceu, o encarregou de reunir uma comitiva para levar o problema ao gerente. Alceu atravessava os corredores sob os aplausos dos colegas, pena que era um dia daqueles.

O gerente ficou surpreso ao descobrir que a queda de produtividade era causada por uma simples ferramenta de baixa qualidade. Ficou também sinceramente preocupado com a segurança dos seus colegas. Não entendeu muito bem o que a comida ruim servida no refeitório tinha a ver com isso, mas ainda queria ouvir Alceu. Tentou explicar que a empresa só pagava o vale transporte, se o cobrador era mal educado não havia muito que ele pudesse fazer. Perguntou se Alceu estava reclamando do preço do pão porque queria um aumento, mas não foi ouvido. Por fim acabou perdendo a paciência e deu a reunião por encerrada, não podia parar a fábrica por causa de um resmungão. Nem lembrava qual era a reivindicação inicial da comitiva.

Foi um dia daqueles de perdas. Alceu perdeu o foco. A empresa perdeu a chance de ter produtos melhores. Colegas perderam dedos com suas ferramentas ruins. Foi um dia daqueles, em que se não tiver atenção, se perde uma chance única de fazer algo realmente grande.

Seguramente, o pior dia.



Sexta-feira, dia de pagamento e chovendo, não podia existir um dia pior para alguém se enfiar num banco, mas ele precisava aproveitar que sua indenização tinha saído justamente no último dia pra pagar o imposto com desconto. Com isso ia sobrar mais pra obra da casa.

A fila já começava na calçada. Na chuva ele esperava o vai e volta de pessoas para trás da linha amarela. “Você está portando objetos de metal...” e lá ia o sujeito catar moedas, chaves, fivelas e seja lá o que a porta tenha resolvido barrar. Mas era uma coisa que a gente precisa se sujeitar em nome da segurança. Lembrava ainda do tempo em que toda semana se via a notícia de uma agência invadida por assaltantes.

Finalmente na porta, se despede do seu guarda-chuva. Deve deixá-lo junto com os outros do lado de fora para pegar na saída. Sabia que não estaria ali quando voltasse e não aceitava a possibilidade de pegar o de outra pessoa, assim entra na agência conformado com a ideia de voltar molhado para casa.

Lá dentro mais uma fila para retirar uma ficha. Com essa ficha se ganha um número para ser chamado sem precisar ficar na fila. Senta ao lado de um aposentado com muita disposição para conversa, e se vendo próximo do seu dinheiro também sente vontade de conversar. Conta ao atento senhor toda sua história e como ela gerou uma boa indenização. O idoso se desculpa por interromper e pede que ele guarde seu lugar enquanto vai ao banheiro. No caminho o pobre velho é abordado por um segurança com cara de assustado porque falava no telefone. Tudo bem que há normas de segurança, mas aquilo é um desrespeito com uma pessoa daquela idade. Ele pensa em chamar a atenção do guarda, mas seu número finalmente é chamado.


Depois de descontadas as taxas e pago o imposto, agora ele tem em suas mãos o seu suado dinheiro. Valeu o sacrifício de ter ido ao banco. Ele nem se importa com o guarda-chuva que se foi, talvez até compre outro. Por uma quadra ele caminha como um vitorioso, até que alguém lhe encosta uma arma nas costelas e anuncia o assalto.

Uma homenagem pra você



O dia de Mariosvaldo já começava torto por causa do motorista do ônibus. Desde o dia em que teve que brigar com o tal motorista que ia deixando um idoso para trás, porque ele demorava a chegar à porta, só embarcava depois de ter certeza de que ninguém seria deixado lá. Isso fazia com que o motorista lhe olhasse com raiva todo santo dia. É difícil ter um dia bom começando com toda essa energia negativa.

Naquele dia a energia ruim grudou nele e foi junto para o trabalho. Mal entrou na produção e foi surpreendido pelos gritos do gerente que queria saber quem era o responsável pelo prejuízo da empresa. Alguém havia feito uma regulagem errada em uma máquina e todo um lote de peças foi feito fora do padrão. Mariosvaldo sabia quem era o responsável, e sabia que se o gerente não encontrasse alguém para pagar pelo erro todos seriam penalizados. No dia anterior chamou a atenção do colega novo que olhava mensagens no celular escondido, o colega explicou que o filho pequeno estava muito mal no hospital. Mariosvaldo apenas lhe pediu para não descuidar do trabalho, o que não aconteceu, e agora o gerente queria a cabeça de alguém. Mariosvaldo assumiu o erro do colega que provavelmente seria demitido.

Aquela manhã foi bem longa e dolorosa. O gerente o repreendeu na frente dos colegas, disse que todos seus anos de trabalho na empresa não justificavam a falha, aquilo com certeza pesaria na decisão sobre a promoção que Mariosvaldo pleiteava há tanto tempo. Enfatizou o quanto todos seriam prejudicados pela irresponsabilidade dele. Durante todo aquele dia os colegas o olhavam com os olhos do motorista. Menos o novato que desviava o olhar cada vez que passava por ele.


Resolveu voltar pra casa a pé. Preferia caminhar uma hora do que sentir aquela energia ruim de novo. Pelo menos de noite tinha festa no bairro. Um vizinho postou no tal de facebook umas fotos de um cachorro que juntou na rua e agora estava bem gordinho. Todo mundo admirava ele por ser bom com os animais e dariam uma festa em sua homenagem, até uns vereadores iam aparecer. No caminho de casa Mariosvaldo sonhava em um dia fazer uma coisa boa de verdade e ser digno de homenagens dos vizinhos.

Terêncio sem mulheres



Terêncio ficou realmente revoltado quando viu o Mundo sem Mulheres no Fantástico. Não tanto pela ideia de não ter mulher no mundo, mesmo que isso fosse bem ruim de se imaginar. O que mexeu com seu orgulho como representante da raça masculina foi o deboche da Lindaura e das comadres na roda de chimarrão. Mas ele não ia ser motivo de piada praquelas faladeiras.

Aproveitou o feriado pra mostrar pra mulher o quanto podia ser prendado. Quando ela acordou já estava pronto e de pé do lado da cama. Ela estranhou, mas como todos os dias ia se levantando. Com um sinal da mão o marido a deteve – Fica aí que hoje quem cuida da casa sou eu. E teu chimarrão tá aí na cabeceira da cama. – Ela arregalou os olhos e se encolheu debaixo das cobertas prevendo uma desgraça.

O primeiro problema era o café da manhã do piá. Não lembrava do que a mãe lhe dava pra comer quando era criança, mas não era nenhuma daquelas coisas empacotadas que tinha no armário. Já tava na hora do guri aprender a se virar pra não ser mais um passando vergonha na tv. Deu 20 pila pro filho e mandou pra rua se virar. Ter 7 anos não é desculpa pra se escorar nos pais.

Lembrou que a mulher vivia reclamando de ter que lavar a roupa e resolveu aceitar o desafio. Ficou indignado com a Lindaura quando entrou na lavanderia e descobriu que eles tinham uma máquina de lavar em casa. Juntou as roupas do banheiro, o macacão da firma, os panos de prato da cozinha e colocou tudo lá dentro. Pra aproveitar o espaço que sobrou e fazer render a lavagem colocou também uns tapetes que há tempos precisavam de um banho. Tomou cuidado pra não colocar produtos de limpeza demais. Pra não exagerar colocou só meia garrafa de cada um. Meio amaciante, meio alvejante, meio sabão em pó concentrado e meio pinho sol pra matar as bactérias da roupa.


Agora era só fazer o churrasco pro almoço e chamar a patroa. Ela ainda ia ter a tarde toda livre pra contar vantagem do baita homem que tinha em casa pra turma do chimarrão. Os espetos ela podia lavar no outro dia. Queria o quê? Feriado é um dia só.

O blog voltou



É isso povo, estou reativando o blog atendendo a pedidos. Alguns. Na verdade foi só um. Nem foi bem um pedido, foi mais um comentário tipo "Bah, parou de escrever no blog?". Mas enfim... Tô de férias na universidade e vou desenterrar as crônicas que não postei ainda.

Como vocês sabem os textos que coloco aqui foram publicados na minha coluna no Jornal Zona Oeste de Novo Hamburgo. Acontece que o projeto foi um sucesso, a equipe editorial teve que aumentar a circulação do jornal pra municipal e agora ela é regional. Agora eu escrevo pro Jornal RS e tô todo bobo recebendo elogios por email e de pessoas que eu encontro.

O blog vai continuar sendo atualizado pro pessoal que é de longe e gosta de dar risada com meus textos, mas o jornal não vai perder espaço tão cedo. Quem tem cachorro pequeno em casa, como eu, sabe do que tô falando. E quero ver começar o fogo do churrasco, manter o chão do carro limpo ou limpar janela com um tablet.

Tá, chega de bobagem que tenho um monte de textos pra postar. Boa leitura e obrigado a todos que acompanham meu trabalho como colunista.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Feliz Páscoa! Compre a sua.



Elisaldo não gostava de datas comemorativas, sabia que todas elas tinham seus significados distorcidos para lhe tirar dinheiro. Natal, dia da criança, da mulher, dos namorados, da sogra, do cachorro e todas as outras passaram a ser a mesma coisa, o dia de gastar dinheiro com presentes para alguém.

Mas a páscoa o incomodava mais que as outras, ela ofendia a sua inteligência. A ideia de alguém tentando lhe convencer que um coelho bota ovos, e de chocolate, o deixa bem desconfortável. Principalmente quando compara o tamanho do coelho com o tamanho do ovo. E mesmo sem considerar isso, considerando que o ovo não saiu do coelho e sim de uma fábrica, pagar por um ovo o valor de 10 barras do mesmo chocolate o fazia se sentir deprimido. Será que as lojas acham que ele não sabe fazer contas?

Sendo cristão, como a maioria dos brasileiros, ele conheceu o significado da páscoa como sendo o triunfo de Jesus ressuscitando três dias depois de morrer crucificado. Mesmo que fosse de qualquer outra religião ele acharia o sacrifício de Cristo muito mais digno de ser celebrado do que o do coelho, por maior que seja o ovo.

Ele lembra que mesmo antes de Cristo a páscoa já era celebrada pelos hebreus. A data marcava a libertação da escravidão e fuga deles do Egito. Isso o faz pensar em fazer o mesmo, se libertar da escravidão da mídia e celebrar a páscoa de um jeito mais coerente. Ele decide reunir a família para um almoço no domingo, se desculpar com aqueles que possa ter ofendido e falar a todos o quanto cada um é importante para ele.

Na frente de uma loja vê um pai que arrasta o filho que, aos berros, exige ganhar o ovo mais caro. Esse que só tem de diferente dos outros o desenho de um herói na embalagem. Lembra que seu pequeno pode ter uma reação parecida e acabar com seu almoço, sem contar a reação da mulher e a cara de reprovação dos parentes. A sogra provavelmente vai esquecer das flores que recebeu dele no Dia da Sogra e vai dizer que melhor seria ter uma filha solteira ou viúva.

Elisaldo entra na loja e assume mais uma dívida no cartão de crédito.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

E esse papo de Papa?


Elisaldo ficou horrorizado quando recebeu a notícia da renúncia do Papa Bento XVI. A palavra renúncia por si só já o apavorava e fazia tudo parecer ainda mais trágico. Ficou até um pouco decepcionado quando descobriu que isso era só um pedido de demissão. Mas se usaram uma palavra tão feia a coisa devia ser séria.

Ficou realmente assustado quando tentou imaginar o mundo sem um Papa. O motivo do susto era não lembrar o que o Papa fazia. Se todo mundo achava ele tão importante e Elisaldo não sabia o porquê, isso fazia dele um tanto desinformado, e isso não é uma coisa que alguém goste de admitir. Então fez o que sabia que devia ser feito, concordou com o que a maioria pensa e imaginou um cenário trágico para o mundo despapado.

Não podia ficar apenas observando a queda da nossa civilização sem tomar uma atitude, decidiu assumir ele mesmo o cargo até que a igreja se reorganizasse. E seu primeiro grande desafio como pontífice era descobrir qual sua função.

A primeira coisa que lhe veio à mente foi que ele deveria comandar toda a igreja e seus fiéis espalhados pelo mundo. Mas aí lembrou de que o Papa não faz as leis da igreja, elas foram escritas há muito tempo por alguém que se assegurou de criá-las de maneira que qualquer um que tentasse mudá-las fosse enviado direto pro inferno. Decidiu deixar a igreja como estava por enquanto, o novo eleito que se arriscasse a queimar no fogo eterno. Até lá Elisaldo manteria a ordem combatendo o pecado do mundo. Pensou nas aulas de geografia e lembrou que o mundo é um lugar bem grande, deve ter um bom bocado de pecados pra combater.

Era coisa demais pra um homem só, mesmo sendo um Papa. Por fim, decidiu ele também renunciar. Seria muito mais fácil se cada um combatesse seus próprios pecados e de alma limpa procurasse uma igreja para fazer parte de algo maior. Maior do que uma igreja que precisa ficar ditando regras pras pessoas se afastarem de coisas que lhes fazem mal e sobrecarregando velhinhos com a responsabilidade pelos nossos erros.


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Eles não morreram em vão



Peço desculpas aos amigos que acompanham o blog procurando crônicas bem humoradas que brincam com situações cotidianas, mas desta vez o que tenho pra dizer não é nada engraçado. Além de desagradar alguns leitores acredito que este texto vai me indispor com alguns amigos e provavelmente me trará problemas profissionalmente, mas agora é hora de secar as lágrimas pra ter uma visão mais clara do que aconteceu em Santa Maria.

Passado o impacto inicial pela tragédia na boate Kiss o foco passou a ser a caça aos culpados. Entre os principais apontados estão o poder público, os proprietários da boate e os músicos da banda que fizeram uso de fogos no seu show. Qual deles deve pagar pela morte de tantos jovens? Não seriam todos eles culpados? Ou ainda, não seríamos todos nós culpados?

Os administradores públicos certamente são culpados por não cumprir sua função primordial que é tutelar a população. Isso mesmo, somos tutelados por nossa incapacidade de agir de maneira que não nos prejudiquemos ou possamos causar danos a terceiros. Se não fosse assim não precisaríamos de uma lei proibindo dirigir alcoolizado, usar drogas ou a tão aclamada lei da ficha limpa que nos tira a possibilidade de votar em políticos condenados. O estado deveria existir para cumprir a vontade do povo, mas ele acaba sendo obrigado a protegê-lo dela.

A Kiss por acaso estava com o alvará de funcionamento vencido, mas mesmo com a documentação em dia a tragédia não seria menor. Se ele existia e estava vencido é porque a casa já teve autorização para funcionar. E isso nas mesmas condições que se encontrava no dia do incêndio, ou alguém pensou que eles haviam fechado saídas de emergência depois que o alvará venceu? Entramos agora na linha que divide o que é legal e o que é moral. Mesmo dentro das normas exigidas, é correto abrir uma casa noturna com uma única via de acesso? É correto fazer economia em sistemas de segurança não instalando sprinklers e um sistema de exaustão de fumaça só porque não há uma lei que exija isso? Os proprietários também condenaram aquelas pessoas à morte quando se aproveitaram de uma norma mal feita para economizar dinheiro.

Já é sabido que a maioria das vítimas fatais morreu por inalação de fumaça tóxica proveniente da queima da espuma de isolamento acústico. Posso estar enganado, mas acredito que neste ponto os proprietários foram mal orientados e optaram por uma espuma mais barata que apenas não era tão eficiente na retenção do som. Acho difícil acreditar que o vendedor tenha esclarecido que esta espuma propagava chamas rapidamente e emitia gases letais quando queimada. O vendedor que omitiu essas informações não tem sua parcela de culpa?  Até agora não ouvi ninguém se manifestando pela retirada deste produto do mercado.

Mas mesmo sendo um produto altamente inflamável nada teria acontecido se a banda não fizesse uso de fogos no show de maneira inadequada. Certo? Isso faz com que a corda passe para o pescoço dos músicos e põe sangue em nossas mãos. O uso de fogos indoor passou a ser quase uma exigência do mercado de entretenimento e quem não se sujeita a isso perde espaço neste meio cada dia mais disputado. Eu mesmo já tive que usar esse material contra a minha vontade. Quem me conhece sabe o quanto sou criterioso e cauteloso com meu trabalho, mesmo com todo o cuidado para manter uma distância segura de pessoas e material inflamável aqueles poucos segundos de queima de fogos são de pura tensão e medo. E meu medo não é infundado, em vinte anos de profissão já vi vários acidentes com fogo causados por pessoas despreparadas. Já presenciei acidentes com músicos, garçons, decoradores e vários com barmans. Não porque estes sejam mais despreparados que os outros, mas porque barman que não faz show de fogos não arruma trabalho.

As normas de segurança que precisamos desrespeitar para satisfazer alguns clientes não param por aí. Você prestou atenção em onde estavam os extintores de incêndio na última festa que foi? Não? Talvez porque eles estavam escondidos por ficarem feios nas fotos. Até saídas de emergência são escondidas com tecido, biombos ou armários para não estragarem o visual do ambiente. Hoje só uso iluminação de led, mas já usei muito canhões de luz que causavam queimaduras graves em lugares com circulação de pessoas e até crianças. Vale lembrar que muita gente ainda usa esse tipo de canhão. Acreditem, já tive que colocar iluminação na beira de piscinas, mesmo todo mundo sabendo do que pode acontecer quando de junta água e eletricidade. Estas sem dúvida foram algumas das noites mais tensas que já passei, e tudo porque o espetáculo é mais importante que a segurança para muitas pessoas.

A tragédia de Santa Maria me fez pensar o quanto Deus tem cuidado de mim até hoje. Eu poderia ser o culpado por alguma coisa semelhante. Por minha causa mães estariam enterrando filhos, namoradas veriam desaparecer a pessoa com quem sonhavam construir um futuro e o país perderia estudantes com sede de mudança. Sabe, isso poderia acontecer por sua culpa também. Quando for fazer eventos procure profissionais sérios e ouça o que eles têm para lhe dizer. Se um profissional se nega a fazer alguma coisa que colocaria em risco seus convidados, você ou ele mesmo isso não o torna menos qualificado que outro, na maioria das vezes é exatamente o contrário.

Os cemitérios estão cheios de pessoas que acreditavam que acidentes só aconteciam com os outros. Espero que a morte daqueles jovens não tenha sido em vão e que sirva para acabar com uma das maiores causas de acidentes no mundo, o nosso otimismo irresponsável. A irresponsabilidade de várias pessoas incendiou aquela boate, matou dezenas de pessoas em acidentes de trânsito no feriadão, queimou casas com instalações elétricas irregulares e afogou crianças em locais impróprios para o banho.

Mas ninguém quer saber disso. A multidão tem sangue nos olhos e alguém terá de ser enforcado em praça pública para aplacar a sua ira.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A lista



Ano novo, vida nova. Tão tradicional quanto as festas de final de ano é a famosa lista de objetivos de Marialva. Lista que ela elabora depois da tradicional ressaca do dia primeiro e da também tradicional hospitalização por intoxicação alimentar causada por comer as sobras das festas.

Não precisa pensar muito para que o primeiro item apareça. Perder peso. Marialva sabe que não está tão acima do normal, mas como ela não pode colocar em sua lista que a vizinha engorde terá que resolver por si mesma. A caneta para sobre o papel e sua boca se retorce de descontentamento. A ideia de perder, mesmo que seja peso, não lhe agrada. Ela risca o primeiro e único item e reescreve ganhar forma.

Pensa melhor e se dá conta de que o verão logo acaba e o tempo para desfilar suas recém adquiridas formas será bem curto. Talvez mais curto que o short da vizinha. Talvez não tão curto, mas nada que valha a privação de todas as delícias calóricas que só dias muito quentes nos proporcionam. O negócio é se organizar, agendar o tal regime para no próximo verão estar em forma. Assim, a rabiscada e curta lista ganha um complemento, ganhar forma a partir de setembro.

Essa programação com tanta antecedência faz Marialva se sentir uma pessoa mais organizada e responsável, contudo não resolve o problema do banho de sol nos fundos de casa no próximo final de semana. Se pelo menos tivesse um muro, mas aquela cerca de arame galvanizado barata a fazia deitar quase ao lado da vizinha piriguete com aquela irritante cor de galinha assada de capa de livro de receitas.

A lista de objetivos precisa de um pouco mais de objetividade. Ela é rabiscada novamente, agora com um pouco mais de força. Apertando os lábios e franzindo as sobrancelhas Marialva escreve: construir um muro, comprar uma canga e acender uma vela para que a vizinha tenha estrias enormes.

Fim da lista.