Peço desculpas aos amigos que
acompanham o blog procurando crônicas bem humoradas que brincam com situações
cotidianas, mas desta vez o que tenho pra dizer não é nada engraçado. Além de
desagradar alguns leitores acredito que este texto vai me indispor com alguns
amigos e provavelmente me trará problemas profissionalmente, mas agora é hora
de secar as lágrimas pra ter uma visão mais clara do que aconteceu em Santa
Maria.
Passado o impacto inicial pela
tragédia na boate Kiss o foco passou a ser a caça aos culpados. Entre os principais
apontados estão o poder público, os proprietários da boate e os músicos da
banda que fizeram uso de fogos no seu show. Qual deles deve pagar pela morte de
tantos jovens? Não seriam todos eles culpados? Ou ainda, não seríamos todos nós
culpados?
Os administradores públicos certamente
são culpados por não cumprir sua função primordial que é tutelar a população. Isso
mesmo, somos tutelados por nossa incapacidade de agir de maneira que não nos
prejudiquemos ou possamos causar danos a terceiros. Se não fosse assim não
precisaríamos de uma lei proibindo dirigir alcoolizado, usar drogas ou a tão
aclamada lei da ficha limpa que nos tira a possibilidade de votar em políticos
condenados. O estado deveria existir para cumprir a vontade do povo, mas ele
acaba sendo obrigado a protegê-lo dela.
A Kiss por acaso estava com o
alvará de funcionamento vencido, mas mesmo com a documentação em dia a tragédia
não seria menor. Se ele existia e estava vencido é porque a casa já teve
autorização para funcionar. E isso nas mesmas condições que se encontrava no
dia do incêndio, ou alguém pensou que eles haviam fechado saídas de emergência
depois que o alvará venceu? Entramos agora na linha que divide o que é legal e
o que é moral. Mesmo dentro das normas exigidas, é correto abrir uma casa noturna
com uma única via de acesso? É correto fazer economia em sistemas de segurança
não instalando sprinklers e um sistema de exaustão de fumaça só porque não há
uma lei que exija isso? Os proprietários também condenaram aquelas pessoas à
morte quando se aproveitaram de uma norma mal feita para economizar dinheiro.
Já é sabido que a maioria das
vítimas fatais morreu por inalação de fumaça tóxica proveniente da queima da
espuma de isolamento acústico. Posso estar enganado, mas acredito que neste
ponto os proprietários foram mal orientados e optaram por uma espuma mais
barata que apenas não era tão eficiente na retenção do som. Acho difícil
acreditar que o vendedor tenha esclarecido que esta espuma propagava chamas
rapidamente e emitia gases letais quando queimada. O vendedor que omitiu essas
informações não tem sua parcela de culpa?
Até agora não ouvi ninguém se manifestando pela retirada deste produto
do mercado.
Mas mesmo sendo um produto
altamente inflamável nada teria acontecido se a banda não fizesse uso de fogos
no show de maneira inadequada. Certo? Isso faz com que a corda passe para o
pescoço dos músicos e põe sangue em nossas mãos. O uso de fogos indoor passou a
ser quase uma exigência do mercado de entretenimento e quem não se sujeita a
isso perde espaço neste meio cada dia mais disputado. Eu mesmo já tive que usar
esse material contra a minha vontade. Quem me conhece sabe o quanto sou
criterioso e cauteloso com meu trabalho, mesmo com todo o cuidado para manter
uma distância segura de pessoas e material inflamável aqueles poucos segundos
de queima de fogos são de pura tensão e medo. E meu medo não é infundado, em
vinte anos de profissão já vi vários acidentes com fogo causados por pessoas
despreparadas. Já presenciei acidentes com músicos, garçons, decoradores e
vários com barmans. Não porque estes sejam mais despreparados que os outros,
mas porque barman que não faz show de fogos não arruma trabalho.
As normas de segurança que
precisamos desrespeitar para satisfazer alguns clientes não param por aí. Você
prestou atenção em onde estavam os extintores de incêndio na última festa que
foi? Não? Talvez porque eles estavam escondidos por ficarem feios nas fotos.
Até saídas de emergência são escondidas com tecido, biombos ou armários para
não estragarem o visual do ambiente. Hoje só uso iluminação de led, mas já usei
muito canhões de luz que causavam queimaduras graves em lugares com circulação
de pessoas e até crianças. Vale lembrar que muita gente ainda usa esse tipo de
canhão. Acreditem, já tive que colocar iluminação na beira de piscinas, mesmo
todo mundo sabendo do que pode acontecer quando de junta água e eletricidade.
Estas sem dúvida foram algumas das noites mais tensas que já passei, e tudo
porque o espetáculo é mais importante que a segurança para muitas pessoas.
A tragédia de Santa Maria me fez
pensar o quanto Deus tem cuidado de mim até hoje. Eu poderia ser o culpado por
alguma coisa semelhante. Por minha causa mães estariam enterrando filhos,
namoradas veriam desaparecer a pessoa com quem sonhavam construir um futuro e o
país perderia estudantes com sede de mudança. Sabe, isso poderia acontecer por
sua culpa também. Quando for fazer eventos procure profissionais sérios e ouça
o que eles têm para lhe dizer. Se um profissional se nega a fazer alguma coisa
que colocaria em risco seus convidados, você ou ele mesmo isso não o torna
menos qualificado que outro, na maioria das vezes é exatamente o contrário.
Os cemitérios estão cheios de
pessoas que acreditavam que acidentes só aconteciam com os outros. Espero que a
morte daqueles jovens não tenha sido em vão e que sirva para acabar com uma das
maiores causas de acidentes no mundo, o nosso otimismo irresponsável. A
irresponsabilidade de várias pessoas incendiou aquela boate, matou dezenas de
pessoas em acidentes de trânsito no feriadão, queimou casas com instalações
elétricas irregulares e afogou crianças em locais impróprios para o banho.
Mas ninguém quer saber disso. A multidão
tem sangue nos olhos e alguém terá de ser enforcado em praça pública para
aplacar a sua ira.

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